Bem vindo ao meu mundo

Bem vindo ao meu mundo

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O que pensa a mulher na caixa? (Episódio IV – Clair de Lune.*)


Clair de Lune. Esse era seu nome. O artístico, claro. Até onde ela sabia, pais e mães não tinham o louvável hábito de dar aos filhos nomes tão poéticos.
Uma amiga sua tinha uma teoria, não totalmente desenvolvida, sobre o estranho sentimento de crueldade que os pais podem ter em relação a sua prole. Dar aos filhos nomes ridículos devia fazer parte dessa cruel relação.
O nome dessa amiga era Carolina. Um nome bonito, com certeza. Carolina trabalhava como corista à noite e estudava Direito durante o dia. O trabalho noturno financiava o sonho diurno.
Clair de Lune era a estrela do show. Seu nome, o artístico, claro, brilhava na entrada das casas noturnas da capital.
Clair de Lune sabia como ninguém envolver a plateia com sua voz rouca e sensual, com seus olhos de sono e promessas e seus gestos que dominavam o palco.
Carolina, com as outras coristas, entrava no intervalo. Nenhuma delas tinha o poder de sedução quase animal de Clair de Lune.
Clair de Lune lembra das meninas enquanto olha as fotos amarelecidas do álbum.
Sob a marquise na cidade velha, a mulher encolhe-se em posição fetal dentro da caixa de papelão. É madrugada e o frio congela seus ossos.
Ela tenta se aquecer com jornais e alguns trapos velhos dentro da caixa que recolhera do lixo.
Na manhã seguinte, enquanto limpa a calçada, o gari vai encontrar, no meio de papelões, trapos, ratazanas e lixo, a mulher morta. Com ela não será achado nenhum documento, nenhuma identificação, apenas um álbum velho cheio de fotografias manchadas pela umidade e nas quais é impossível visualizar qualquer imagem.
Ela será enterrada como a indigente Maria de Tal – Desconhecida número 17.302.


*Clair de lune

Victor Hugo (1802-1885) - Les Orientales
Luar

Serena paira a lua e nas ondas rebrilha.
Livre a janela, enfim, aberta para a brisa,
A sultana olha, além, e o mar que se repisa,
Com um fluxo de prata adorna as negras ilhas.

Vibrando, de seus dedos, escapa a guitarra.
Ela ouve... Um surdo som golpeia os surdos ecos.
Uma grande nau turca a vir de águas de Cos
A agitar o arquipélago com remos tártaros?

Os alcatrazes, um a um, a mergulhar
Cortando a água que **** em pérolas sobre asas?
Será um djim que lá no alto assovia em voz rasa
E lança ameias lá da torre para o mar?

Quem pois revolve as vagas lá perto do harém?
Nem o negro alcatraz sobre o fluxo embalado,
Nem as pedras do muro ou rumo ritmado
Da grande nau pela onda e remos em vaivém.

São alforjes de peso; e dos prantos a trilha.
Ver-se-ia ao sondar o mar que os engalana,
Moverem-se em seus flancos tal qual forma humana...
Serena paira a lua e nas ondas rebrilha.

O que pensa a mulher na caixa? (Episódio II).

A mulher, há mais de dezessete horas na caixa, pensa em sua insólita vida. Puta que pariu. O que quê eu tô fazendo aqui? Tô com fome, com frio, minhas articulações doem e essa bosta dessa fralda... Ai, que ideia besta!
A mulher na caixa recorda o planejamento da operação policial por ela coordenada e tenta se convencer de que não havia outro jeito. Se quisessem prender em flagrante os traficantes de armas teriam que ser mais espertos, mais teimosos e mais, mais o quê? Mais burros, sim, com certeza, mais burros! Ao invés de estar em casa com meus filhos estou aqui, com uma puta vontade de fazer xixi e não consigo fazer na fralda geriátrica.
Fora o colega mais antigo, acostumado a pensar em todas as possibilidades e impossibilidades de uma ação policial, quem tivera a ideia de todos usarem fraldas geriátricas, pois teriam que ficar, sabe-se lá quantas horas, à espreita dentro do depósito.
Após assumirem suas posições estratégicas e fora de perigo da ocorrência de fogo cruzado (ou fogo amigo?), não poderiam mais sair de seus esconderijos e que esconderijo melhor em um depósito de materiais do que caixas?
Na companhia da mulher, na caixa, apenas duas garrafas de água mineral. Não conseguia nem imaginar rosquinhas em sua companhia naquele momento. Alguns de seus colegas tinham esses doces artefatos como amigos inseparáveis na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte (por ataque cardíaco ou por um tiro) os separe.
Um tiro. Ela bem sabia o que era isso. Ela conhecia a dor, o medo, a triste constatação de que não era a Super-Mulher. Era vulnerável. Sim, tiros a atingiam, a feriam. Seu sangue corria quente, viscoso e vermelho no calçamento, até ela perder os sentidos.
Não posso me desconcentrar. Tenho que ficar atenta a qualquer ruído. A qualquer momento eles podem chegar. Será que os outros estão acordados?
Todos os passos foram meticulosamente planejados, mas, conforme o tempo passa, a tensão aumenta.
Isso é tensão ou é medo? Medo é tensão? Isso é a mesma coisa que eu sentia antes de levar o tiro? Será que isso é cagaço?
A mulher na caixa faz mais uma desesperada tentativa de urinar na fralda e recorda de sua mãe.
Me desculpa, mãe! Por favor, me desculpa, já que eu não consigo me desculpar. Eu deveria ter ficado contigo quando tu mais precisava. Eu deveria ter cuidado melhor de ti. Eu deveria ter cuidado de ti. Eu deveria ter tido paciência. Deveria ter largado tudo. Deveria ter tirado licença pra ficar contigo. Eu deveria. Eu deveria. Eu deveria. Me perdoa, mãe!
Talvez sejam essas lembranças que a impeçam de urinar. Sua mãe, nos últimos tempos de vida, usava fraldas.
A mulher na caixa tem vontade de arrancar aquilo do corpo, mas sabe que, a qualquer instante, terá que fazer uso do “equipamento”. A razão (?) fala mais alto e a mulher conforma-se a esperar a hora de agir.
Agir. Foi em ação que o colega levou o tiro que o deixou paraplégico. Anos na polícia valeram a ele nada mais do que merda. Ele suportou por longos onze anos a cadeira de rodas. Ele foi corajoso ou covarde acabando com a própria vida?
Corajosa ou covarde? O que eu sou?
Corajosa! Sou policial linha-de-frente. Covarde! Faço isso pra não ter que enfrentar meus fantasmas.
Corajosa! Crio meus filhos sozinha. Covarde! Abandonei eles nas mãos de empregadas para satisfazer a quem? Ao Estado? Para provar o quê? Provar que polícia é polícia? Provar que sou durona e capaz de aguentar toda essa merda?
Corajosa! Apenas eu cuidei de minha mãe quando o Alzheimer a pegou de jeito. Covarde! Não fiz por ela tudo que deveria.
Seus devaneios não a levam tão longe que a impeçam de escutar o ruído do portão do depósito abrindo, seguido do ronco potente de motores de veículos entrando no local.
Ao mesmo tempo em que, com um único golpe, abre a caixa apontando o fuzil para os seis homens que desceram dos dois veículos, ela sente o líquido morno escorrendo no material absorvente e dá a primeira voz de comando:
- Polícia! Todo mundo parado!


Texto escrito contando com o auxílio luxuoso de Regina Fogassi, que me contou o que pensa essa mulher na caixa e a quem entrego, de coração, a personagem.
Tu tens razão, Regina: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” (Antoine de Saint-Exupéry).

domingo, 12 de dezembro de 2010

O que pensa a mulher na caixa? (Episódio I).


A mulher, de cócoras dentro da caixa, pensa nas contas a pagar. Pensa nos olhos tristes do filho que ficou sem presente no último aniversário.
A mulher na caixa pensa que não tem mais paciência para aguentar os ataques histéricos do chefe e do ex-marido. Pensa na quantidade de pancake que usou para disfarçar o olho roxo.
A mulher na caixa pensa nas muitas amigas que teve, nas poucas que tem e nas raras que conseguirá manter. Quais?
A mulher na caixa pensa que está com vontade de ir ao banheiro. Pensa que sua calcinha está com o elástico frouxo e que correu um fio da sua última meia-calça inteira.
A mulher na caixa pensa que quer gritar, mas sabe que deve fazer silêncio. Pensa que se ficar mais um minuto de cócoras irá fazer xixi no maiô de lantejoulas emprestado.
A mulher na caixa pensa na janta a preparar, na faxina da casa a fazer, na louça a lavar e no maldito calo que a sandália apertada está fazendo no seu dedinho.
A mulher na caixa, através dos orifícios feitos na tampa, percebe o facho de luz violeta. Graças a Deus!
A mulher na caixa atira os braços para cima fazendo a tampa cair. De pé, faz biquinho com os lábios, olhar sensual e moleque e com voz suave e rouca canta:
“Répi bãrfidei tu iuuuuu
Répi bãrfidei tu iuuuuu
Répi bãrfidei mai diãr bóóóóós
Répi bãrfidei tu iuuuuuu.”

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Muito tempo depois...

Uma visão familiar.




Primeiro encontro.



Apenas uma barreira de vidro separava o saguão climatizado do aeroporto da névoa e da chuva fina e fria que caía lá fora.

O táxi amarelo estacionou em local proibido, bem em frente à porta principal e, do banco traseiro, desceu a mulher mais estonteante que eu já vira.

A porta automática deu passagem à criatura loira, linda e leve. Os pés da mulher pareciam não tocar o chão.

Naquele momento, como uma coreografia exaustivamente ensaiada, todas as cabeças viraram-se para a bela. Expressões de desejo e inveja confundiram-se nos rostos masculinos e femininos.

Ela vestia uma gabardine cinza-quase-prata e botas pretas de saltos altos, os cabelos soltos e secos, apesar da chuva lá fora.

Deslizando ela foi até o balcão de uma das empresas aéreas e manteve um curto diálogo com a funcionária que a atendeu sonambulicamente.

De onde eu estava não foi possível escutar a conversa entre ambas, mas a moça da empresa aérea, após consultas no terminal, assentiu com a cabeça e a loira afastou-se do balcão.

O mundo a volta recomeçou a girar. Todos retornaram ao que faziam antes da entrada daquela deusa. Menos eu que continuava hipnotizado pela divina aparição.

Segui-a até o portão de embarque. Naquele momento ela, num gesto demorado, virou a cabeça em minha direção e me encarou. Não consigo descrever em palavras a sensação que se apoderou de meu corpo. Os olhos da criatura eram negros e fundos como um abismo sem fim. Uma tontura inexplicável fez com que eu dobrasse as pernas e caísse de joelhos, um calafrio percorreu minha espinha até chegar ao couro cabeludo, fazendo meus poucos cabelos eriçarem-se. Perdi os sentidos.

Não sei quanto tempo se passou. Acordei em uma sala branca. Eu havia sido socorrido e levado a um pronto-socorro. Estava conectado a aparelhos que monitoravam meus sinais vitais. Livrei-me dos fios e saí cambaleante pelo corredor lotado de pessoas.

No saguão de entrada uma televisão era o centro das atenções. Uma edição extraordinária do jornal local noticiava o desaparecimento do voo 832 enquanto cruzava o Pacífico.

- Devo admitir, foi muito difícil processar os fatos. Você entende? Eu deveria estar naquele avião. Não embarquei porque passei mal e fui levado ao pronto-socorro.

- Calma, disse o psiquiatra, para tudo há uma explicação plausível.

- Pode ser, pode ser. Bem doutor... Nunca mais acharam sinais do avião e muito menos de sobreviventes ou de restos mortais, mas o senhor pode ter razão, deve haver alguma explicação.

Desisti das sessões. Com certeza não era um psiquiatra que teria explicações para esse primeiro encontro. Sim, eu encontrei mais duas vezes aquela mulher, mas isso fica para depois. É, depois eu conto. Agora estou com muito sono. Preciso dormir.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Só mais uma noite.

Da porta ele observa a mulher estirada na cama. O corpo dela semicoberto por um edredom com estampas chinesas. Os cabelos crespos, longos e negros não deixam o rosto à vista. No peito do pé direito, pequeno e de unhas vermelhas, uma borboleta tatuada.

Quem é essa moça? Que quarto é esse?

Sua imagem refletida no espelho da cômoda mostra-o usando um casaco azul, camisa branca e calça jeans. Claro! Os bolsos! Deve haver algum documento. Rápido examina-os e nada encontra. Nada também nos bolsos da calça.

Droga! O que está acontecendo? É um esforço, um grande esforço inútil, tentar pensar, lembrar de alguma coisa. Desconsolado ele encosta a cabeça à porta e examina o quarto com atenção. Nada ali lhe parece familiar. Nem os cheiros no ambiente trazem-lhe qualquer recordação.

Um resmungo infantil cresce no corredor:

- Mamãe! Mamãe!

O menino que aparenta não mais que três anos de idade passa por ele como se não o visse, entra no quarto e vai direto à cama, aconchega-se ao lado da mulher.

Pouco depois o menino está dormindo. Ele se aproxima cauteloso. A criança tem o cabelo como o da moça, mas nas infantis feições ele reconhece a si mesmo. Ele cobre a criança com uma ponta do edredom e percebe que a mulher não respira, no peito a marca de um tiro.

Lentamente ele se retira fechando a porta com cuidado.

Longe, um galo canta.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Nau fantasma.

Feito a nau Catarineta

Sem porto pra atracar

Estou perdida do céu

E à deriva no mar


Só quero um vento forte

Que me faça navegar

Calmarias não me levam

Aonde eu quero chegar

Estou perdida do céu

E à deriva no mar


A fome castiga o homem

Que insiste em viajar

O medo gruda na alma

E não me deixa voltar

Estou perdida do céu

E à deriva no mar


Azrael visita o barco

Quer alguém para levar

De tantas visitas feitas

Somente eu e a morte

Nas ondas da noite negra

Estamos no mesmo lugar

Estou perdida do céu

E à deriva no mar.

domingo, 30 de maio de 2010

Coração em desuso.

Ingênuo coração

que nada sabe

além de brincar


Destrambelhado coração

que nada ouve

e só quer sonhar


Triste coração

que dá voltas

e se põe a chorar


Estropiado coração

que de tanto viver

desaprendeu a amar


Deixa-me em paz

coração assombrado

Vai embora de uma vez


Desocupa meu peito

doído e cansado

Vai, vai embora


Talvez assim eu possa

fechar os olhos

e descansar em paz.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Hoje é dia de incinerador.

GRS, 13 de outubro de 2281.



“Na primeira década do terceiro milênio um vírus geneticamente modificado atacou grande parte da população mundial...” Dessa forma o conferencista – até soava engraçado esse termo na atual situação – iniciara a última palestra do congresso realizado no submundo. Palestra transmitida pela tela do grande salão.

Faz-se necessário, a título de esclarecimento a quem encontrar essa mensagem, explicar qual é a atual situação. Não tenho certeza, mas pelo que ouvi, foi no ano de 2009 que apareceu o primeiro caso do que chamaram de gripe H1N1 ou gripe suína. Pessoas em várias partes do mundo morreram, mas não tantas quanto a gripe comum vitimava. Houve uma grande campanha em todos os meios de comunicação “esclarecendo” sobre a nova doença.

À época alguns até acharam estranho - mas, sem ter como competir com os meios de comunicação de massa acabaram calando-se ou sendo calados - que o único medicamento capaz de combater o novo vírus já se encontrava nas farmácias e, poucos meses depois, a vacina anunciada como a única forma possível de prevenção foi colocada à disposição.

Os poucos que ainda se atreviam a questionar essas estranhas coincidências eram taxados de seguidores da teoria da conspiração e vistos como paranoicos. Os fatos que narro agora, ouvi-os de pessoas que ouviram de outras pessoas, pois, ocorreram há mais de duzentos e cinquenta anos. É bom deixar isso claro: não quero que minhas palavras sejam tomadas como verdades absolutas. Não sei se ainda é possível recuperar informações daquela época, pois nasci no submundo. Não sei o que se passa lá em cima, lá onde não temos o direito de ir, onde não sabemos o que acontece. Sabemos apenas o que a tela colocada no centro do grande salão noticia durante uma hora diária, nem um minuto a mais. Não temos o direito de gastar mais energia elétrica. Nosso fornecimento é regulado pelos moradores da superfície.

Ainda não está entendendo, não é mesmo? Eu sei, é difícil. Como estava dizendo, um medicamento e a vacina combatiam a “doença fatal”. No entanto eles eram produzidos por apenas dois laboratórios que monopolizavam o direito de produção.

Ocorreu um fato de que não vou possuo maiores informações, portanto a explicação resta prejudicada, mas esses medicamentos acabaram afetando o organismo das mulheres. Não sei se foi algo planejado ou fortuito. Estou tentando ser o mais imparcial possível. Espero que a pessoa que encontrar essa mensagem tenha discernimento suficiente para entender minha aflição.

As mulheres passaram a ter filhos que não possuíam imunidade alguma e, como grande parte da população mundial tomara ou a vacina ou o medicamento, em pouco tempo já não havia vagas nos hospitais, clínicas, postos de saúde e até mesmo em pronto-socorros. Essa deficiência, com o passar do tempo, demonstrou ser hereditária. As autoridades tentavam resolver os problemas conforme surgiam até perceberem que não havia como resolver cada caso em separado.

Nessa época, através de um consórcio internacional, iniciaram a construção da GRS – Grande Redoma Subterrânea. Esse é o lugar onde nasci e onde, hoje, vou morrer. Não tenho medo da morte. Aprendemos desde a mais tenra idade a não temê-la, pois ela é nossa única chance de liberdade. Apenas não esperava que fôssemos morrer todos de uma só vez. Todos a que me refiro são os últimos habitantes da redoma. Os últimos nascidos por descuido. É... descuido. Explico por que: Houve um grande controle da natalidade na GRS desde que os não imunes foram trazidos para cá. Diziam que era uma das poucas coisas que devíamos fazer. Éramos improdutivos e o Estado gastava o que não podia conosco. Estávamos sobrecarregando a população economicamente ativa da superfície. Éramos uma carga desnecessária, porém, por compaixão seríamos tratados com humanidade, contanto que não tivéssemos filhos. Alguns foram mesmo esterilizados antes de admitidos na redoma, outros se negaram a passar por isso. Desses, os que não tinham familiares próximos, foram sumariamente descartados no incinerador coletivo. Os trazidos por parentes foram conduzidos ao submundo com a promessa de não terem filhos. O Estado pretendia resolver a situação no período de apenas uma geração.

No entanto as coisas, quando dependem da emoção humana, não são racionalmente solucionadas, pois não? Enquanto parentes da superfície controlavam a vida dos que moram aqui embaixo, as coisas até foram mais suportáveis. Mas o tempo passou. Hoje nenhum morador do submundo tem familiares na superfície. Eu já falei, não é? Mais de dois séculos se passaram. Talvez a grande maioria dos moradores lá de cima nem saiba de nossa existência. Talvez apenas algumas autoridades sejam responsáveis por nossa sobrevivência que acaba hoje. Às 16h o fornecimento de ar será cortado.

Sabe, uma coisa me consola, não há mais crianças entre nós. Os mais novos têm vinte e cinco anos e essa é a média de vida entre os moradores da redoma. Suponho, veja bem, apenas suponho que foi adicionada alguma substância esterilizante no alimento que nos é fornecido. Aqui não há doenças. Acho que as pessoas acabam morrendo do que nós chamamos, ironicamente, de SDM – síndrome da depressão da minhoca.

Não quero tornar-me cansativo a quem porventura localizar essa mensagem. Talvez em algum trabalho arqueológico no futuro ela seja desenterrada, alguém consiga decifrar essa escrita e entenda a angústia por que estou passando. Só quero que saibam que nós existimos, nós vivemos, amamos, sentimos medo, tivemos desejos e, enfim, morremos por decisões alheias.

O conferencista – ainda acho engraçado – está explicando as opções: ou nos dirigimos ao incinerador ou aguardamos o corte do fornecimento de ar e morremos aos poucos. Grandes alternativas, não?

Bem, como não tenho esperança de que alguma coisa vá mudar até às 16h, estou indo para a sala do incinerador. Acondiciono a mensagem que estou terminando agora em uma pequena caixa de metal que deixarei sob o controle da tela torcendo para que alguém a encontre.

Adeus.

Assinado: Bil 832.

PS: Não procurem nossos restos mortais. Mesmo os que esperarem pelo corte do fornecimento do ar terão seus corpos reduzidos à cinza no grande incinerador.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O pecado da carne.

Na cela úmida do final do corredor 6, sentado a um canto, ele fita o pequeno quadrado com grades. Seu pescoço dói. Não é possível determinar a quanto tempo ele olha para cima. A parca claridade do dia que finda não o alcança. Ele pensa que, na verdade, há muito tempo não vê a luz do sol, a não ser aquela réstia teimosa que insiste em mantê-lo em contato com o mundo exterior.


Hoje ele até mesmo duvida da existência do mundo lá fora. Seus limites reduziram-se àquela cela de 6 metros quadrados. Esse é o mundo inteiro. Esse é o seu mundo.

De tempos em tempos uma mão, que pode até ser independente de qualquer corpo – essa hipótese o enche de um sentimento de superioridade – invade seu território através de uma pequena abertura ao rés do chão e empurra um prato de comida. Essa mesma mão, horas depois, puxa o prato intocado para fora da dimensão conhecida.

Ele lembra o motivo que o levou aos 6 metros quadrados. Sim, ele lembra. Até pouco tempo atrás queria esquecer, hoje não.

Quando voltara do campo de batalha ainda tentava controlar-se. Com o passar dos dias acabou sendo controlado. Nos primeiros dias cães e gatos caçados em becos escuros e devorados vivos reduziam sua fome. Passados alguns meses, não mais.

Os cadáveres recém enterrados, cujas tumbas ele profanava após angustiante espera, não tinham o mesmo sabor da carne que satisfizera sua fome no deserto.

Seus antigos companheiros não tiveram a oportunidade de descobrir o que ele, apenas ele, descobrira. Integravam um batalhão de reconhecimento. Um batalhão perdido no meio do nada, sem esperanças de salvamento. Os dois primeiros foram comidos após morrerem. Ao término de três meses restavam ele e o sargento.

Nunca sua vida fora tão semelhante a um jogo e ele estava determinado a não perder. Atacou seu superior durante a noite. O sargento dormia quando teve o braço direito decepado na altura do ombro. Um golpe certeiro com a machadinha resolvera a situação. Não deu atenção aos urros enquanto devorava, sob o olhar bestificado do que gritava, os nacos de carne do membro amputado.

Naquele momento ele descobriu o sabor que saciaria seu corpo e seu espírito dali pra frente. Percebera que devia manter sua provisão viva. Providenciou, entre os trapos que sobravam sobre ambos, um torniquete e uma mordaça.

Durante sete dias alimentou-se do colega de farda, amputando o outro braço e as duas pernas, sempre estancando o sangue dos ferimentos para mantê-lo vivo o máximo de tempo que conseguisse. O restante teve que se contentar em ingerir após a circulação sanguínea já ter cessado. Que pena!

Ao restarem somente os ossos afastou-se do local. Saciado, forte e dotado de novo ânimo caminhou por mais alguns dias. A fatalidade encaminhou-o até um acampamento onde o socorreram e o entregaram no posto militar mais próximo.

De volta à cidade natal, após as frustradas tentativas com cães, gatos e cadáveres, não teve como se safar das suspeitas, investigações e, por fim, da prisão. Impossível devorar 15 moradores da pacata cidadezinha sem deixar vestígios.

Sim, ele sabia o motivo. Mas apesar do confinamento solitário ele julgava-se superior ao restante da humanidade. Ele, somente ele, suplantara Deus. Usurpara Dele o poder da morte e chegara ao conhecimento final: o pecado original, o pecado da carne. Tolos! O pecado da carne não é o sexo. O pecado da carne é a carne devorar a carne. Esse prazer, ele garante, é muito mais intenso que o prazer sexual.

Talvez, daqui a alguns dias, a mão receosa que empurra o prato sirva de consolo à falta do que ele não pode mais alcançar.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A morte líquida.

A lua cheia, atrás da nuvem escura,

Abranda a estrada deserta e nua

A noite segue seus trôpegos passos

Até a margem do cais solitário



Olhando o rio a coragem se esvai

O corpo treme de medo ou de frio

O fundo escuro da água a atrai

Ouve o vento que a chama e nada mais



Está escrita sua morte na água

Então porque fugir, pra que lutar

E Iara acolhe seu corpo moreno



A fome da morte saciada

E a saudade chegou pra ficar

Os dias, as noites, agora iguais.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Elias

Elias, um praticante de pirofagia,

doce e triste alma infantil a ferro forjada.

Quando criança, ser um dragão ele queria,

mas, cedo descobriu, seu querer não vale nada.



De pai e mãe nunca conheceu a identidade.

Nunca teve amor na vida pra sentir saudade.

No orfanato com tantos outros iguais viveu.

Não chorar jamais jurou a si, não a um possível deus,



Aprendendo a engolir vidro, sapos e fogo,

sua inexistente infância foi passando.

Nas ruas a arte da sobrevivência aprendeu.



Hoje, Elias é o grande profeta louco.

Triste, só, da irrealidade se afastando,

perto chegando do mundo que um dia foi meu

Messias.

Messias transporta defuntos e

isso não mais traz estranhamento.

Necessário que alguém o faça,

Messias responde espantado,

ao ouvir o pio lamuriento.



Às suas costas as negras aves

crocitam sobre as carpideiras,

aguardam a alma errante

desfazer-se das negras teias.



As lápides à sua frente

indicam o fim da jornada.

Messias deposita o fardo,

desse destino já está cansado.



Queria voltar à estrada,

encontrar Helena e namorar.

Mas seus pés perderam o rumo,

suas mãos perderam o calor

e Helena, Messias já transportou.

segunda-feira, 29 de março de 2010

R.P.M. (Registros Post Mortem).

Tudo lhe parece sem sentido, uma queda veloz e terrível. Mas, não fora essa a sua busca? “Mate o corpo que a alma morre”. Recordou o aço frio da navalha cortando pele, carne e nervos, o tempo passando lento, as pálpebras pesando, amolecimento e calafrios. Abre os olhos devagar, pois a claridade o incomoda. Permanecera, talvez, tempo demais com os olhos fechados. Do teto uma luminária circular ilumina o aposento de paredes brancas. Ao tentar mudar a posição do corpo percebe a inutilidade do movimento. Tem as mãos presas à lateral da cama e está no leito de um hospital. À direita, a porta fechada. Nenhuma janela. Por que não há janelas aqui? Pensando nisso adormece novamente.


Tem pesadelos e nem ao menos sabe se eles ainda o perturbam. Já se tornaram companheiros habituais, habitam sua solidão, seus dias vazios e sua falta de amor. Lentamente retorna ao mundo dos despertos. Há algo diferente, pois o cheiro que lhe chega ao nariz mudou, não é mais aquele característico de um hospital: éter, clorofórmio ou sabe-se lá o quê. Há um odor desconhecido, parece que de sangue seco e umidade. Concentra-se em permanecer acordado. Ainda preso pelos pulsos, porém não em uma cama. As paredes à sua volta não mais são brancas. Cores primárias colorem desenhos de figuras humanas e animais, dispostas em círculos incontáveis e em baixos-relevos nas paredes de pedra. À sua volta vozes entoam em uníssono. Buscou dentro de seus devaneios suicidas a explicação para o que fizera. Quando desistiu? Sua vida fora uma eterna desistência? Tanto tempo buscando respostas, tantos caminhos desejados e não trilhados. Muita dor, pouco riso.

Da porta, aberta delicadamente, uma moça ruiva o observa. Ele pode ver os dentes dela, mostrados em um meio-sorriso. Dentes brancos como a roupa que ela usa. Brancos como as paredes do quarto. O olhar de comiseração que ela lhe dirige causa nele uma vontade de gritar e gritaria se não lhe faltasse voz. Mas por que pensar sobre isso agora? É tão bom ter a mente vazia. Pensara muito nos últimos dias. Esquecimento pleno e imobilidade física era seu desejo.

Não viu a ruiva fechar a porta. Já não é a luminária sobre seu leito que clareia o ambiente. Percebe que a claridade entra por uma fresta entre os blocos de pedra. O canto monótono está mais próximo. Sente o medo crescendo em seu espírito. Dúvidas pipocam em seu cérebro e já não sabe se a sorte de seu corpo lhe é assim tão indiferente como até a pouco parecera. Se tanto faz vida ou morte porque a angústia faz seu peito doer tanto? Podia voltar atrás, afinal estava vivo e seguro em uma cama de hospital e, por Deus, queria continuar vivo, mesmo sem saber o motivo. Ainda que a vida se resumisse a respirar e nada mais, queria viver. Mesmo a dor, que sentira estender-se da epiderme até o fundo da alma, aceitaria novamente se fosse preciso.

Nesse momento a ruiva lhe acena uma despedida discreta com a mão direita, enquanto a esquerda acaba de fechar a porta. As paredes brancas se dissolvem no ar e sua realidade é agora o templo feito de pedras sobrepostas. Ao redor do altar de sacrifícios onde está preso, sacerdotes mascarados cantam numa antiga língua que ele entende e, se abrisse a boca, certamente é a que falaria. É um canto de saudação a um deus que exige sacrifício de sangue humano para atender aos pedidos de seus devotos. Atordoado, fecha os olhos e os abre novamente esperando estar no hospital, porém continua no templo. Sabe que está acordado e isso não é um pesadelo, é a sua realidade. Então o quarto de paredes brancas e a enfermeira ruiva gostosa é que faziam parte de um sonho? Não pode ser verdade. Súbitos flashes atravessam sua mente liquefeita. Numa floresta tropical, calor sufocante, ele foge de seus perseguidores. Muitos de sua tribo foram mortos e a aldeia destruída. Não há ninguém que o possa ajudar.

Um dos mascarados aproxima-se trazendo nas mãos uma faca cujo cabo é um... Pedaço de fêmur humano? Nada mais há a fazer. O sacerdote ergue a faca sobre o centro de seu peito. Fecha os olhos e aguarda a dor derradeira.

O som de uma campainha. Campainha? A ruiva o avisa do término de seu turno, lhe deseja boa noite, sai do quarto e deixa pairando no ar o perfume a que ele já se acostumou. Dorme embalado pelo acalanto vindo de sua longínqua infância.

domingo, 28 de março de 2010

O executor.

Era-lhe impossível imaginar-se falando a alguém a respeito do que o incomodava. A certeza da bizarrice das conclusões a que chegara tirava-lhe toda e qualquer vontade de verbalizar seus pensamentos. Como aceitar que o que o incomodava de fato era ele mesmo?


Na esperança de exorcizar-se começou a escrever. Escrevia horas a fio, para si mesmo, para ninguém mais. Escrevia páginas e mais páginas e após rasgava-as miudamente ou fazia uma fogueirinha discreta no fundo do pátio ou no banheiro da casa. Discreta para que ninguém viesse lhe perguntar o que estava queimando. Sabe como é. Nunca falta um curioso na volta.

Assim passou-se o tempo: pensar, escrever, rasgar, queimar. Até o dia em que mesmo isso perdeu completamente o sentido. Via-se num beco sem saída e continuava incomodado, sofrendo por dividir–se consigo mesmo. Dividir corpo, mente, espírito (talvez?) com seu maior algoz. Era como dividir suas confidências com o executor de sua sentença de morte. Pior ainda, o executor não usava capuz para cobrir o rosto e ele se via ajoelhado à beira da guilhotina, confessando pecados, amores, sonhos e frustrações de uma vida inteira àquele que, em instantes, separaria sua cabeça do resto do corpo. E aquele era ele mesmo, olhando-o de cima e sem o menor traço de empatia ou remorso pelo que faria em instantes.

Sabia das responsabilidades externas a si. Não queria causar problemas a outros, principalmente às pessoas com quem convivia diariamente, mulher, filhos, colegas.

“Era um cidadão comum, como esses que se vê na rua.” Mais essa agora, pensou, não bastassem suas próprias ideias loucas, ainda vinham à mente ideias loucas de outros.

Queria tanto não pensar mais ou, pelo menos, pensar de uma forma mais lógica. Menos pessoal? Se assim o conseguisse poderia deixar seu eu algoz de lado e sem qualquer possibilidade de ação dentro de seu pensar, pois estaria sendo imparcial, mas não via remota possibilidade disso acontecer. Seus limites há muito estavam demarcados. O limite final era sua própria pele e dali não lhe era permitido ultrapassar.

Foi dessa maneira que colocou as coisas quando, não por vontade própria, mas por determinação hierárquica superior, viu-se frente a frente com o psicólogo da autarquia estadual onde trabalhava há quase vinte anos.

Pode ser que o especialista saiba indicar a saída. Não custa tentar, o sigilo é garantido devido à ética profissional.

Arrependeu-se das pretéritas fogueirinhas. Teria preferido entregar seus escritos a conversar com alguém de fora de seu mundo. Seus escritos seriam como garrafas jogadas ao mar e encontradas por outra pessoa em um continente muito distante da ilha onde naufragara. Alguém que jamais o veria pessoalmente. Sem contato, sem possibilidade de interação com o que trazia dentro de si, pois odiava aquele que o fazia sofrer e sabia por intuição que, assim como ele, outros sofreriam por suas mãos. Mesmo assim, instado pelas palavras persuasivas do doutor, tentou esmiuçar sua lógica absurda a quem se dispunha a ouvir-lhe durante quarenta e cinco minutos diários, uma vez por semana, consultas pagas pelo convênio médico.

Foi na quinta sessão que, de forma banal, comentou ao doutor que começara a sentir uma comichão mo peito. O psicólogo, demonstrando preocupação com o novo paciente, pediu-lhe para abrir a camisa. Ele daria uma olhada e lhe indicaria um especialista se constatasse visualmente algo de anormal, pois o paciente lhe garantira nada ter visto na pele. No entanto, o que viu, sua última visão nesse mundo, deixou-o, por breves segundos antes da morte, completamente estarrecido. Do peito do paciente, exposto à difusa claridade do consultório climatizado, duas garras escuras e gélidas atravessaram a pele branca do tórax, seguraram como tenazes seu pescoço engravatado e o sufocaram lentamente. Não por surpresa, mas por absoluta impossibilidade, nenhum som saiu de sua garganta pouco a pouco dilacerada pelas garras de rapina.

O legado Dinasta.

No beco escuro e fétido onde fora largado ele tenta recompor seus pensamentos. O pouco que recorda não lhe basta. Enquanto isso deixa seu corpo inerte, como se a imobilidade física pudesse acionar um movimento cerebral repentino que o fizesse recordar dos últimos momentos – serão horas, dias, meses? Há quanto tempo está ali? Onde esteve antes? Quem o trouxe ou como veio? Encolhe as pernas junto ao corpo, evitando que os ratos continuem a passar por sobre suas canelas.


Bem, ele pensa, vamos relaxar, fechar os olhos, esquecer essa dor que parece espalhar-se pela circulação sanguínea. Deixar a mente vagar até encontrar algo que a faça recordar.

Encontrara um amigo que há anos não via. Conversaram e o amigo lhe contou como sua vida mudara desde que entrara para um grupo de empreendedores denominado ... Não conseguiu lembrar. O amigo convidou-o a participar de uma reunião do grupo na semana seguinte, na noite de quinta-feira. A reunião fora marcada na cidade vizinha da que morava. Ele deveria ir sozinho:

- Questão de segurança. Você entende, não é?

Não, não entendia, mas não tinha importância, pois não pretendia mesmo ir. Achara o antigo amigo muito diferente, estranho de um modo que não soube definir. Tinha mais o que fazer e não pretendia deixar de ficar com sua namorada para ir a uma reunião dos ... Engraçado! Por que não conseguia lembrar?

Ao sair do serviço na quinta-feira da semana seguinte, sem conseguir evitar, seus passos o levaram à estação rodoviária. Tomara o ônibus das 19h. Às 20h15min desembarcara na cidade vizinha e, mesmo desconhecendo o endereço indicado pelo amigo, às 21h chegara pontualmente ao local da reunião.

Pessoas desconhecidas conversavam na entrada de um salão mal iluminado. Os espelhos do hall estavam cobertos por panos pretos. Caminhou pelo recinto como se já o conhecesse. Na semiescuridão avistou seu amigo conversando com um casal. Foi até ele.

Nesse momento tudo ficou confuso novamente. As imagens passavam em flashes rápidos e pouco delas ele conseguia manter.

Os que estavam no salão, após a porta principal ser fechada, cercaram-no com expressões famintas. Homens, mulheres, sangue, cheiro de morte e uma dor lancinante em seu pescoço. Após, a escuridão e o beco, os ratos, o muro pichado à sua frente.

O muro! Sabia que algo nele chamara sua atenção. Trêmulo, levanta-se e chega bem perto do muro, onde lê a palavra escrita com tinta spray vermelha: DINASTIA. Grita como um “Eureka”:

- É isso, dinastia!

Uma dor aguda em sua têmpora esquerda quase o derruba novamente. Os flashes da memória vão se ligando até formarem o quadro completo. Cambaleante ele sai do beco sujo. Toma a direção da rua movimentada. Não a reconhece, porém isso não mais importa.

No asfalto molhado os carros deslizam. Os bares lotados. Uma garota de minissaia passa por ele, apressada. Algo desperta, embrutecido e selvagem, dentro dele. Perdendo o resto de lucidez e com uma expressão faminta no rosto vai atrás da moça.





28.03.2010.

domingo, 21 de março de 2010

A troca.

Acordou sobressaltado, com a sensação da queda que nos é familiar desde crianças. Término de pesadelo, vôo sonhado, cordão de prata que prende o espírito ao corpo, ou outra esdrúxula ou científica explicação qualquer.


Teve pouquíssimo tempo para ver alguma coisa à volta e o que viu não lhe forneceu explicação alguma antes de sua morte. Viu-se no reflexo de um grande vidro retangular espelhado à sua frente. O reflexo o mostrava preso a uma cadeira de encosto alto, um dispositivo metálico acoplado à sua cabeça e ligado a fios espiralados pretos e vermelhos que terminavam em um grande interruptor na parede à sua direita. Esse interruptor seguro pela mão de um homem vestindo terno preto e gravata. Acima do vidro, uma inscrição que lhe pareceu em latim e abaixo: Elyria – Ohio.

Mas a imagem refletida no vidro era de um homem branco e gordo vestindo um macacão de cor laranja, em cujo bolso, no peito, está serigrafado o número 8401. Não era, de jeito nenhum, a sua própria imagem, mesmo assim ele sabia que estava lá dentro daquele corpo prestes a ser eletrocutado. Milésimos de segundos. A mão do homem de terno desceu a chave e tudo acabou.

Em Gregória/México amanhece. Carolina volta ao quarto e da porta chama:

- Victor, está na hora, homem! Já estou saindo e levando “Bi” para a creche. Toma café antes de sair!

Ele abre os olhos devagar. Parece desconfiado, não assustado, talvez incrédulo. Senta-se à cama. Examina as mãos, os braços, as pernas, os pés. Volta ao abdômen tenso e ao peito sem pelos. Olha o rosto no espelho do armário e dá uma grande gargalhada, deitando-se para num pulo rápido sair da cama de vez.

Aproxima o rosto do espelho e sorri com satisfação para a própria imagem. Aprova os dentes brancos, a barba por fazer, os olhos escuros, o pescoço forte, os ombros de nadador. Um bonito homem, hein? Então deu certo? O livro não mentira, afinal. Quem diria?

Vai até a porta do quarto e examina o local. Está em uma casa modesta, mas não miserável, limpa, guardanapos de crochê coloridos por todos os cantos. Na mesa da cozinha, café servido. Retorna para o interior do quarto e vê a foto de uma bonita, linda, gostosa morena abraçada ao corpo que o espelho agora reflete. Essa é minha mulher? Me dei bem demais!

O porta-retratos ao lado do primeiro mostra uma menina de uns cinco anos de idade, bonita como a mãe e exatamente como eu gosto. É só fazer tudo direitinho que ninguém vai perceber nada. Não vou cometer os mesmos erros que com as outras 27 meninas. Dessa vez os ratos não me pegam. Posso sumir com as duas, mas antes vamos aproveitar muito bem, principalmente com a garotinha do papai. Pensando nisso, acaricia os próprios genitais. Hum! Isso aqui ta muito bom também! Gostei!

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Após a odisséia.


Nós que ainda tentamos descobrir
a origem dos monolitos negros.
Povo errante perdido dentro de si,
alcançamos, enfim, a fronteira final.

E lá chegando, surpresa atroz,
não havia nenhum deus esperando,
somente o vazio a dar boas vindas.

Onde tempo e espaço se tocam
onde não quisemos jamais estar.
Somente a solidão por companhia
ofereceu-nos a escuridão.

Não mais temos a pérola azul.
Nós a destruímos na partida
e a estupidez por fim nos matou.



                                             10.01.2010