Bem vindo ao meu mundo

Bem vindo ao meu mundo

domingo, 28 de março de 2010

O executor.

Era-lhe impossível imaginar-se falando a alguém a respeito do que o incomodava. A certeza da bizarrice das conclusões a que chegara tirava-lhe toda e qualquer vontade de verbalizar seus pensamentos. Como aceitar que o que o incomodava de fato era ele mesmo?


Na esperança de exorcizar-se começou a escrever. Escrevia horas a fio, para si mesmo, para ninguém mais. Escrevia páginas e mais páginas e após rasgava-as miudamente ou fazia uma fogueirinha discreta no fundo do pátio ou no banheiro da casa. Discreta para que ninguém viesse lhe perguntar o que estava queimando. Sabe como é. Nunca falta um curioso na volta.

Assim passou-se o tempo: pensar, escrever, rasgar, queimar. Até o dia em que mesmo isso perdeu completamente o sentido. Via-se num beco sem saída e continuava incomodado, sofrendo por dividir–se consigo mesmo. Dividir corpo, mente, espírito (talvez?) com seu maior algoz. Era como dividir suas confidências com o executor de sua sentença de morte. Pior ainda, o executor não usava capuz para cobrir o rosto e ele se via ajoelhado à beira da guilhotina, confessando pecados, amores, sonhos e frustrações de uma vida inteira àquele que, em instantes, separaria sua cabeça do resto do corpo. E aquele era ele mesmo, olhando-o de cima e sem o menor traço de empatia ou remorso pelo que faria em instantes.

Sabia das responsabilidades externas a si. Não queria causar problemas a outros, principalmente às pessoas com quem convivia diariamente, mulher, filhos, colegas.

“Era um cidadão comum, como esses que se vê na rua.” Mais essa agora, pensou, não bastassem suas próprias ideias loucas, ainda vinham à mente ideias loucas de outros.

Queria tanto não pensar mais ou, pelo menos, pensar de uma forma mais lógica. Menos pessoal? Se assim o conseguisse poderia deixar seu eu algoz de lado e sem qualquer possibilidade de ação dentro de seu pensar, pois estaria sendo imparcial, mas não via remota possibilidade disso acontecer. Seus limites há muito estavam demarcados. O limite final era sua própria pele e dali não lhe era permitido ultrapassar.

Foi dessa maneira que colocou as coisas quando, não por vontade própria, mas por determinação hierárquica superior, viu-se frente a frente com o psicólogo da autarquia estadual onde trabalhava há quase vinte anos.

Pode ser que o especialista saiba indicar a saída. Não custa tentar, o sigilo é garantido devido à ética profissional.

Arrependeu-se das pretéritas fogueirinhas. Teria preferido entregar seus escritos a conversar com alguém de fora de seu mundo. Seus escritos seriam como garrafas jogadas ao mar e encontradas por outra pessoa em um continente muito distante da ilha onde naufragara. Alguém que jamais o veria pessoalmente. Sem contato, sem possibilidade de interação com o que trazia dentro de si, pois odiava aquele que o fazia sofrer e sabia por intuição que, assim como ele, outros sofreriam por suas mãos. Mesmo assim, instado pelas palavras persuasivas do doutor, tentou esmiuçar sua lógica absurda a quem se dispunha a ouvir-lhe durante quarenta e cinco minutos diários, uma vez por semana, consultas pagas pelo convênio médico.

Foi na quinta sessão que, de forma banal, comentou ao doutor que começara a sentir uma comichão mo peito. O psicólogo, demonstrando preocupação com o novo paciente, pediu-lhe para abrir a camisa. Ele daria uma olhada e lhe indicaria um especialista se constatasse visualmente algo de anormal, pois o paciente lhe garantira nada ter visto na pele. No entanto, o que viu, sua última visão nesse mundo, deixou-o, por breves segundos antes da morte, completamente estarrecido. Do peito do paciente, exposto à difusa claridade do consultório climatizado, duas garras escuras e gélidas atravessaram a pele branca do tórax, seguraram como tenazes seu pescoço engravatado e o sufocaram lentamente. Não por surpresa, mas por absoluta impossibilidade, nenhum som saiu de sua garganta pouco a pouco dilacerada pelas garras de rapina.

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