Bem vindo ao meu mundo

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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O que pensa a mulher na caixa? (Episódio II).

A mulher, há mais de dezessete horas na caixa, pensa em sua insólita vida. Puta que pariu. O que quê eu tô fazendo aqui? Tô com fome, com frio, minhas articulações doem e essa bosta dessa fralda... Ai, que ideia besta!
A mulher na caixa recorda o planejamento da operação policial por ela coordenada e tenta se convencer de que não havia outro jeito. Se quisessem prender em flagrante os traficantes de armas teriam que ser mais espertos, mais teimosos e mais, mais o quê? Mais burros, sim, com certeza, mais burros! Ao invés de estar em casa com meus filhos estou aqui, com uma puta vontade de fazer xixi e não consigo fazer na fralda geriátrica.
Fora o colega mais antigo, acostumado a pensar em todas as possibilidades e impossibilidades de uma ação policial, quem tivera a ideia de todos usarem fraldas geriátricas, pois teriam que ficar, sabe-se lá quantas horas, à espreita dentro do depósito.
Após assumirem suas posições estratégicas e fora de perigo da ocorrência de fogo cruzado (ou fogo amigo?), não poderiam mais sair de seus esconderijos e que esconderijo melhor em um depósito de materiais do que caixas?
Na companhia da mulher, na caixa, apenas duas garrafas de água mineral. Não conseguia nem imaginar rosquinhas em sua companhia naquele momento. Alguns de seus colegas tinham esses doces artefatos como amigos inseparáveis na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte (por ataque cardíaco ou por um tiro) os separe.
Um tiro. Ela bem sabia o que era isso. Ela conhecia a dor, o medo, a triste constatação de que não era a Super-Mulher. Era vulnerável. Sim, tiros a atingiam, a feriam. Seu sangue corria quente, viscoso e vermelho no calçamento, até ela perder os sentidos.
Não posso me desconcentrar. Tenho que ficar atenta a qualquer ruído. A qualquer momento eles podem chegar. Será que os outros estão acordados?
Todos os passos foram meticulosamente planejados, mas, conforme o tempo passa, a tensão aumenta.
Isso é tensão ou é medo? Medo é tensão? Isso é a mesma coisa que eu sentia antes de levar o tiro? Será que isso é cagaço?
A mulher na caixa faz mais uma desesperada tentativa de urinar na fralda e recorda de sua mãe.
Me desculpa, mãe! Por favor, me desculpa, já que eu não consigo me desculpar. Eu deveria ter ficado contigo quando tu mais precisava. Eu deveria ter cuidado melhor de ti. Eu deveria ter cuidado de ti. Eu deveria ter tido paciência. Deveria ter largado tudo. Deveria ter tirado licença pra ficar contigo. Eu deveria. Eu deveria. Eu deveria. Me perdoa, mãe!
Talvez sejam essas lembranças que a impeçam de urinar. Sua mãe, nos últimos tempos de vida, usava fraldas.
A mulher na caixa tem vontade de arrancar aquilo do corpo, mas sabe que, a qualquer instante, terá que fazer uso do “equipamento”. A razão (?) fala mais alto e a mulher conforma-se a esperar a hora de agir.
Agir. Foi em ação que o colega levou o tiro que o deixou paraplégico. Anos na polícia valeram a ele nada mais do que merda. Ele suportou por longos onze anos a cadeira de rodas. Ele foi corajoso ou covarde acabando com a própria vida?
Corajosa ou covarde? O que eu sou?
Corajosa! Sou policial linha-de-frente. Covarde! Faço isso pra não ter que enfrentar meus fantasmas.
Corajosa! Crio meus filhos sozinha. Covarde! Abandonei eles nas mãos de empregadas para satisfazer a quem? Ao Estado? Para provar o quê? Provar que polícia é polícia? Provar que sou durona e capaz de aguentar toda essa merda?
Corajosa! Apenas eu cuidei de minha mãe quando o Alzheimer a pegou de jeito. Covarde! Não fiz por ela tudo que deveria.
Seus devaneios não a levam tão longe que a impeçam de escutar o ruído do portão do depósito abrindo, seguido do ronco potente de motores de veículos entrando no local.
Ao mesmo tempo em que, com um único golpe, abre a caixa apontando o fuzil para os seis homens que desceram dos dois veículos, ela sente o líquido morno escorrendo no material absorvente e dá a primeira voz de comando:
- Polícia! Todo mundo parado!


Texto escrito contando com o auxílio luxuoso de Regina Fogassi, que me contou o que pensa essa mulher na caixa e a quem entrego, de coração, a personagem.
Tu tens razão, Regina: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” (Antoine de Saint-Exupéry).

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