Bem vindo ao meu mundo

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segunda-feira, 26 de abril de 2010

Hoje é dia de incinerador.

GRS, 13 de outubro de 2281.



“Na primeira década do terceiro milênio um vírus geneticamente modificado atacou grande parte da população mundial...” Dessa forma o conferencista – até soava engraçado esse termo na atual situação – iniciara a última palestra do congresso realizado no submundo. Palestra transmitida pela tela do grande salão.

Faz-se necessário, a título de esclarecimento a quem encontrar essa mensagem, explicar qual é a atual situação. Não tenho certeza, mas pelo que ouvi, foi no ano de 2009 que apareceu o primeiro caso do que chamaram de gripe H1N1 ou gripe suína. Pessoas em várias partes do mundo morreram, mas não tantas quanto a gripe comum vitimava. Houve uma grande campanha em todos os meios de comunicação “esclarecendo” sobre a nova doença.

À época alguns até acharam estranho - mas, sem ter como competir com os meios de comunicação de massa acabaram calando-se ou sendo calados - que o único medicamento capaz de combater o novo vírus já se encontrava nas farmácias e, poucos meses depois, a vacina anunciada como a única forma possível de prevenção foi colocada à disposição.

Os poucos que ainda se atreviam a questionar essas estranhas coincidências eram taxados de seguidores da teoria da conspiração e vistos como paranoicos. Os fatos que narro agora, ouvi-os de pessoas que ouviram de outras pessoas, pois, ocorreram há mais de duzentos e cinquenta anos. É bom deixar isso claro: não quero que minhas palavras sejam tomadas como verdades absolutas. Não sei se ainda é possível recuperar informações daquela época, pois nasci no submundo. Não sei o que se passa lá em cima, lá onde não temos o direito de ir, onde não sabemos o que acontece. Sabemos apenas o que a tela colocada no centro do grande salão noticia durante uma hora diária, nem um minuto a mais. Não temos o direito de gastar mais energia elétrica. Nosso fornecimento é regulado pelos moradores da superfície.

Ainda não está entendendo, não é mesmo? Eu sei, é difícil. Como estava dizendo, um medicamento e a vacina combatiam a “doença fatal”. No entanto eles eram produzidos por apenas dois laboratórios que monopolizavam o direito de produção.

Ocorreu um fato de que não vou possuo maiores informações, portanto a explicação resta prejudicada, mas esses medicamentos acabaram afetando o organismo das mulheres. Não sei se foi algo planejado ou fortuito. Estou tentando ser o mais imparcial possível. Espero que a pessoa que encontrar essa mensagem tenha discernimento suficiente para entender minha aflição.

As mulheres passaram a ter filhos que não possuíam imunidade alguma e, como grande parte da população mundial tomara ou a vacina ou o medicamento, em pouco tempo já não havia vagas nos hospitais, clínicas, postos de saúde e até mesmo em pronto-socorros. Essa deficiência, com o passar do tempo, demonstrou ser hereditária. As autoridades tentavam resolver os problemas conforme surgiam até perceberem que não havia como resolver cada caso em separado.

Nessa época, através de um consórcio internacional, iniciaram a construção da GRS – Grande Redoma Subterrânea. Esse é o lugar onde nasci e onde, hoje, vou morrer. Não tenho medo da morte. Aprendemos desde a mais tenra idade a não temê-la, pois ela é nossa única chance de liberdade. Apenas não esperava que fôssemos morrer todos de uma só vez. Todos a que me refiro são os últimos habitantes da redoma. Os últimos nascidos por descuido. É... descuido. Explico por que: Houve um grande controle da natalidade na GRS desde que os não imunes foram trazidos para cá. Diziam que era uma das poucas coisas que devíamos fazer. Éramos improdutivos e o Estado gastava o que não podia conosco. Estávamos sobrecarregando a população economicamente ativa da superfície. Éramos uma carga desnecessária, porém, por compaixão seríamos tratados com humanidade, contanto que não tivéssemos filhos. Alguns foram mesmo esterilizados antes de admitidos na redoma, outros se negaram a passar por isso. Desses, os que não tinham familiares próximos, foram sumariamente descartados no incinerador coletivo. Os trazidos por parentes foram conduzidos ao submundo com a promessa de não terem filhos. O Estado pretendia resolver a situação no período de apenas uma geração.

No entanto as coisas, quando dependem da emoção humana, não são racionalmente solucionadas, pois não? Enquanto parentes da superfície controlavam a vida dos que moram aqui embaixo, as coisas até foram mais suportáveis. Mas o tempo passou. Hoje nenhum morador do submundo tem familiares na superfície. Eu já falei, não é? Mais de dois séculos se passaram. Talvez a grande maioria dos moradores lá de cima nem saiba de nossa existência. Talvez apenas algumas autoridades sejam responsáveis por nossa sobrevivência que acaba hoje. Às 16h o fornecimento de ar será cortado.

Sabe, uma coisa me consola, não há mais crianças entre nós. Os mais novos têm vinte e cinco anos e essa é a média de vida entre os moradores da redoma. Suponho, veja bem, apenas suponho que foi adicionada alguma substância esterilizante no alimento que nos é fornecido. Aqui não há doenças. Acho que as pessoas acabam morrendo do que nós chamamos, ironicamente, de SDM – síndrome da depressão da minhoca.

Não quero tornar-me cansativo a quem porventura localizar essa mensagem. Talvez em algum trabalho arqueológico no futuro ela seja desenterrada, alguém consiga decifrar essa escrita e entenda a angústia por que estou passando. Só quero que saibam que nós existimos, nós vivemos, amamos, sentimos medo, tivemos desejos e, enfim, morremos por decisões alheias.

O conferencista – ainda acho engraçado – está explicando as opções: ou nos dirigimos ao incinerador ou aguardamos o corte do fornecimento de ar e morremos aos poucos. Grandes alternativas, não?

Bem, como não tenho esperança de que alguma coisa vá mudar até às 16h, estou indo para a sala do incinerador. Acondiciono a mensagem que estou terminando agora em uma pequena caixa de metal que deixarei sob o controle da tela torcendo para que alguém a encontre.

Adeus.

Assinado: Bil 832.

PS: Não procurem nossos restos mortais. Mesmo os que esperarem pelo corte do fornecimento do ar terão seus corpos reduzidos à cinza no grande incinerador.

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