Bem vindo ao meu mundo

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quarta-feira, 21 de abril de 2010

O pecado da carne.

Na cela úmida do final do corredor 6, sentado a um canto, ele fita o pequeno quadrado com grades. Seu pescoço dói. Não é possível determinar a quanto tempo ele olha para cima. A parca claridade do dia que finda não o alcança. Ele pensa que, na verdade, há muito tempo não vê a luz do sol, a não ser aquela réstia teimosa que insiste em mantê-lo em contato com o mundo exterior.


Hoje ele até mesmo duvida da existência do mundo lá fora. Seus limites reduziram-se àquela cela de 6 metros quadrados. Esse é o mundo inteiro. Esse é o seu mundo.

De tempos em tempos uma mão, que pode até ser independente de qualquer corpo – essa hipótese o enche de um sentimento de superioridade – invade seu território através de uma pequena abertura ao rés do chão e empurra um prato de comida. Essa mesma mão, horas depois, puxa o prato intocado para fora da dimensão conhecida.

Ele lembra o motivo que o levou aos 6 metros quadrados. Sim, ele lembra. Até pouco tempo atrás queria esquecer, hoje não.

Quando voltara do campo de batalha ainda tentava controlar-se. Com o passar dos dias acabou sendo controlado. Nos primeiros dias cães e gatos caçados em becos escuros e devorados vivos reduziam sua fome. Passados alguns meses, não mais.

Os cadáveres recém enterrados, cujas tumbas ele profanava após angustiante espera, não tinham o mesmo sabor da carne que satisfizera sua fome no deserto.

Seus antigos companheiros não tiveram a oportunidade de descobrir o que ele, apenas ele, descobrira. Integravam um batalhão de reconhecimento. Um batalhão perdido no meio do nada, sem esperanças de salvamento. Os dois primeiros foram comidos após morrerem. Ao término de três meses restavam ele e o sargento.

Nunca sua vida fora tão semelhante a um jogo e ele estava determinado a não perder. Atacou seu superior durante a noite. O sargento dormia quando teve o braço direito decepado na altura do ombro. Um golpe certeiro com a machadinha resolvera a situação. Não deu atenção aos urros enquanto devorava, sob o olhar bestificado do que gritava, os nacos de carne do membro amputado.

Naquele momento ele descobriu o sabor que saciaria seu corpo e seu espírito dali pra frente. Percebera que devia manter sua provisão viva. Providenciou, entre os trapos que sobravam sobre ambos, um torniquete e uma mordaça.

Durante sete dias alimentou-se do colega de farda, amputando o outro braço e as duas pernas, sempre estancando o sangue dos ferimentos para mantê-lo vivo o máximo de tempo que conseguisse. O restante teve que se contentar em ingerir após a circulação sanguínea já ter cessado. Que pena!

Ao restarem somente os ossos afastou-se do local. Saciado, forte e dotado de novo ânimo caminhou por mais alguns dias. A fatalidade encaminhou-o até um acampamento onde o socorreram e o entregaram no posto militar mais próximo.

De volta à cidade natal, após as frustradas tentativas com cães, gatos e cadáveres, não teve como se safar das suspeitas, investigações e, por fim, da prisão. Impossível devorar 15 moradores da pacata cidadezinha sem deixar vestígios.

Sim, ele sabia o motivo. Mas apesar do confinamento solitário ele julgava-se superior ao restante da humanidade. Ele, somente ele, suplantara Deus. Usurpara Dele o poder da morte e chegara ao conhecimento final: o pecado original, o pecado da carne. Tolos! O pecado da carne não é o sexo. O pecado da carne é a carne devorar a carne. Esse prazer, ele garante, é muito mais intenso que o prazer sexual.

Talvez, daqui a alguns dias, a mão receosa que empurra o prato sirva de consolo à falta do que ele não pode mais alcançar.

2 comentários:

  1. Texto fortíssimo. Gostei do fato de contrariar a expectativa criada pelo título. E o final é brilhante.

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  2. Bahhhhhh, adoreiii Zuuu! O pecado da carne agora tem outro significado!

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