Bem vindo ao meu mundo

Bem vindo ao meu mundo

domingo, 30 de janeiro de 2011

Poucas palavras.

Minicontos do cotidiano.

Desculpa, meu amor, ela disse, largando a faca ao lado do corpo, eu só queria um pouquinho de atenção.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O que pensa a mulher na caixa? (Episódio IV – Clair de Lune.*)


Clair de Lune. Esse era seu nome. O artístico, claro. Até onde ela sabia, pais e mães não tinham o louvável hábito de dar aos filhos nomes tão poéticos.
Uma amiga sua tinha uma teoria, não totalmente desenvolvida, sobre o estranho sentimento de crueldade que os pais podem ter em relação a sua prole. Dar aos filhos nomes ridículos devia fazer parte dessa cruel relação.
O nome dessa amiga era Carolina. Um nome bonito, com certeza. Carolina trabalhava como corista à noite e estudava Direito durante o dia. O trabalho noturno financiava o sonho diurno.
Clair de Lune era a estrela do show. Seu nome, o artístico, claro, brilhava na entrada das casas noturnas da capital.
Clair de Lune sabia como ninguém envolver a plateia com sua voz rouca e sensual, com seus olhos de sono e promessas e seus gestos que dominavam o palco.
Carolina, com as outras coristas, entrava no intervalo. Nenhuma delas tinha o poder de sedução quase animal de Clair de Lune.
Clair de Lune lembra das meninas enquanto olha as fotos amarelecidas do álbum.
Sob a marquise na cidade velha, a mulher encolhe-se em posição fetal dentro da caixa de papelão. É madrugada e o frio congela seus ossos.
Ela tenta se aquecer com jornais e alguns trapos velhos dentro da caixa que recolhera do lixo.
Na manhã seguinte, enquanto limpa a calçada, o gari vai encontrar, no meio de papelões, trapos, ratazanas e lixo, a mulher morta. Com ela não será achado nenhum documento, nenhuma identificação, apenas um álbum velho cheio de fotografias manchadas pela umidade e nas quais é impossível visualizar qualquer imagem.
Ela será enterrada como a indigente Maria de Tal – Desconhecida número 17.302.


*Clair de lune

Victor Hugo (1802-1885) - Les Orientales
Luar

Serena paira a lua e nas ondas rebrilha.
Livre a janela, enfim, aberta para a brisa,
A sultana olha, além, e o mar que se repisa,
Com um fluxo de prata adorna as negras ilhas.

Vibrando, de seus dedos, escapa a guitarra.
Ela ouve... Um surdo som golpeia os surdos ecos.
Uma grande nau turca a vir de águas de Cos
A agitar o arquipélago com remos tártaros?

Os alcatrazes, um a um, a mergulhar
Cortando a água que **** em pérolas sobre asas?
Será um djim que lá no alto assovia em voz rasa
E lança ameias lá da torre para o mar?

Quem pois revolve as vagas lá perto do harém?
Nem o negro alcatraz sobre o fluxo embalado,
Nem as pedras do muro ou rumo ritmado
Da grande nau pela onda e remos em vaivém.

São alforjes de peso; e dos prantos a trilha.
Ver-se-ia ao sondar o mar que os engalana,
Moverem-se em seus flancos tal qual forma humana...
Serena paira a lua e nas ondas rebrilha.

O que pensa a mulher na caixa? (Episódio II).

A mulher, há mais de dezessete horas na caixa, pensa em sua insólita vida. Puta que pariu. O que quê eu tô fazendo aqui? Tô com fome, com frio, minhas articulações doem e essa bosta dessa fralda... Ai, que ideia besta!
A mulher na caixa recorda o planejamento da operação policial por ela coordenada e tenta se convencer de que não havia outro jeito. Se quisessem prender em flagrante os traficantes de armas teriam que ser mais espertos, mais teimosos e mais, mais o quê? Mais burros, sim, com certeza, mais burros! Ao invés de estar em casa com meus filhos estou aqui, com uma puta vontade de fazer xixi e não consigo fazer na fralda geriátrica.
Fora o colega mais antigo, acostumado a pensar em todas as possibilidades e impossibilidades de uma ação policial, quem tivera a ideia de todos usarem fraldas geriátricas, pois teriam que ficar, sabe-se lá quantas horas, à espreita dentro do depósito.
Após assumirem suas posições estratégicas e fora de perigo da ocorrência de fogo cruzado (ou fogo amigo?), não poderiam mais sair de seus esconderijos e que esconderijo melhor em um depósito de materiais do que caixas?
Na companhia da mulher, na caixa, apenas duas garrafas de água mineral. Não conseguia nem imaginar rosquinhas em sua companhia naquele momento. Alguns de seus colegas tinham esses doces artefatos como amigos inseparáveis na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte (por ataque cardíaco ou por um tiro) os separe.
Um tiro. Ela bem sabia o que era isso. Ela conhecia a dor, o medo, a triste constatação de que não era a Super-Mulher. Era vulnerável. Sim, tiros a atingiam, a feriam. Seu sangue corria quente, viscoso e vermelho no calçamento, até ela perder os sentidos.
Não posso me desconcentrar. Tenho que ficar atenta a qualquer ruído. A qualquer momento eles podem chegar. Será que os outros estão acordados?
Todos os passos foram meticulosamente planejados, mas, conforme o tempo passa, a tensão aumenta.
Isso é tensão ou é medo? Medo é tensão? Isso é a mesma coisa que eu sentia antes de levar o tiro? Será que isso é cagaço?
A mulher na caixa faz mais uma desesperada tentativa de urinar na fralda e recorda de sua mãe.
Me desculpa, mãe! Por favor, me desculpa, já que eu não consigo me desculpar. Eu deveria ter ficado contigo quando tu mais precisava. Eu deveria ter cuidado melhor de ti. Eu deveria ter cuidado de ti. Eu deveria ter tido paciência. Deveria ter largado tudo. Deveria ter tirado licença pra ficar contigo. Eu deveria. Eu deveria. Eu deveria. Me perdoa, mãe!
Talvez sejam essas lembranças que a impeçam de urinar. Sua mãe, nos últimos tempos de vida, usava fraldas.
A mulher na caixa tem vontade de arrancar aquilo do corpo, mas sabe que, a qualquer instante, terá que fazer uso do “equipamento”. A razão (?) fala mais alto e a mulher conforma-se a esperar a hora de agir.
Agir. Foi em ação que o colega levou o tiro que o deixou paraplégico. Anos na polícia valeram a ele nada mais do que merda. Ele suportou por longos onze anos a cadeira de rodas. Ele foi corajoso ou covarde acabando com a própria vida?
Corajosa ou covarde? O que eu sou?
Corajosa! Sou policial linha-de-frente. Covarde! Faço isso pra não ter que enfrentar meus fantasmas.
Corajosa! Crio meus filhos sozinha. Covarde! Abandonei eles nas mãos de empregadas para satisfazer a quem? Ao Estado? Para provar o quê? Provar que polícia é polícia? Provar que sou durona e capaz de aguentar toda essa merda?
Corajosa! Apenas eu cuidei de minha mãe quando o Alzheimer a pegou de jeito. Covarde! Não fiz por ela tudo que deveria.
Seus devaneios não a levam tão longe que a impeçam de escutar o ruído do portão do depósito abrindo, seguido do ronco potente de motores de veículos entrando no local.
Ao mesmo tempo em que, com um único golpe, abre a caixa apontando o fuzil para os seis homens que desceram dos dois veículos, ela sente o líquido morno escorrendo no material absorvente e dá a primeira voz de comando:
- Polícia! Todo mundo parado!


Texto escrito contando com o auxílio luxuoso de Regina Fogassi, que me contou o que pensa essa mulher na caixa e a quem entrego, de coração, a personagem.
Tu tens razão, Regina: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” (Antoine de Saint-Exupéry).

domingo, 12 de dezembro de 2010

O que pensa a mulher na caixa? (Episódio I).


A mulher, de cócoras dentro da caixa, pensa nas contas a pagar. Pensa nos olhos tristes do filho que ficou sem presente no último aniversário.
A mulher na caixa pensa que não tem mais paciência para aguentar os ataques histéricos do chefe e do ex-marido. Pensa na quantidade de pancake que usou para disfarçar o olho roxo.
A mulher na caixa pensa nas muitas amigas que teve, nas poucas que tem e nas raras que conseguirá manter. Quais?
A mulher na caixa pensa que está com vontade de ir ao banheiro. Pensa que sua calcinha está com o elástico frouxo e que correu um fio da sua última meia-calça inteira.
A mulher na caixa pensa que quer gritar, mas sabe que deve fazer silêncio. Pensa que se ficar mais um minuto de cócoras irá fazer xixi no maiô de lantejoulas emprestado.
A mulher na caixa pensa na janta a preparar, na faxina da casa a fazer, na louça a lavar e no maldito calo que a sandália apertada está fazendo no seu dedinho.
A mulher na caixa, através dos orifícios feitos na tampa, percebe o facho de luz violeta. Graças a Deus!
A mulher na caixa atira os braços para cima fazendo a tampa cair. De pé, faz biquinho com os lábios, olhar sensual e moleque e com voz suave e rouca canta:
“Répi bãrfidei tu iuuuuu
Répi bãrfidei tu iuuuuu
Répi bãrfidei mai diãr bóóóóós
Répi bãrfidei tu iuuuuuu.”

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Muito tempo depois...

Uma visão familiar.




Primeiro encontro.



Apenas uma barreira de vidro separava o saguão climatizado do aeroporto da névoa e da chuva fina e fria que caía lá fora.

O táxi amarelo estacionou em local proibido, bem em frente à porta principal e, do banco traseiro, desceu a mulher mais estonteante que eu já vira.

A porta automática deu passagem à criatura loira, linda e leve. Os pés da mulher pareciam não tocar o chão.

Naquele momento, como uma coreografia exaustivamente ensaiada, todas as cabeças viraram-se para a bela. Expressões de desejo e inveja confundiram-se nos rostos masculinos e femininos.

Ela vestia uma gabardine cinza-quase-prata e botas pretas de saltos altos, os cabelos soltos e secos, apesar da chuva lá fora.

Deslizando ela foi até o balcão de uma das empresas aéreas e manteve um curto diálogo com a funcionária que a atendeu sonambulicamente.

De onde eu estava não foi possível escutar a conversa entre ambas, mas a moça da empresa aérea, após consultas no terminal, assentiu com a cabeça e a loira afastou-se do balcão.

O mundo a volta recomeçou a girar. Todos retornaram ao que faziam antes da entrada daquela deusa. Menos eu que continuava hipnotizado pela divina aparição.

Segui-a até o portão de embarque. Naquele momento ela, num gesto demorado, virou a cabeça em minha direção e me encarou. Não consigo descrever em palavras a sensação que se apoderou de meu corpo. Os olhos da criatura eram negros e fundos como um abismo sem fim. Uma tontura inexplicável fez com que eu dobrasse as pernas e caísse de joelhos, um calafrio percorreu minha espinha até chegar ao couro cabeludo, fazendo meus poucos cabelos eriçarem-se. Perdi os sentidos.

Não sei quanto tempo se passou. Acordei em uma sala branca. Eu havia sido socorrido e levado a um pronto-socorro. Estava conectado a aparelhos que monitoravam meus sinais vitais. Livrei-me dos fios e saí cambaleante pelo corredor lotado de pessoas.

No saguão de entrada uma televisão era o centro das atenções. Uma edição extraordinária do jornal local noticiava o desaparecimento do voo 832 enquanto cruzava o Pacífico.

- Devo admitir, foi muito difícil processar os fatos. Você entende? Eu deveria estar naquele avião. Não embarquei porque passei mal e fui levado ao pronto-socorro.

- Calma, disse o psiquiatra, para tudo há uma explicação plausível.

- Pode ser, pode ser. Bem doutor... Nunca mais acharam sinais do avião e muito menos de sobreviventes ou de restos mortais, mas o senhor pode ter razão, deve haver alguma explicação.

Desisti das sessões. Com certeza não era um psiquiatra que teria explicações para esse primeiro encontro. Sim, eu encontrei mais duas vezes aquela mulher, mas isso fica para depois. É, depois eu conto. Agora estou com muito sono. Preciso dormir.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Só mais uma noite.

Da porta ele observa a mulher estirada na cama. O corpo dela semicoberto por um edredom com estampas chinesas. Os cabelos crespos, longos e negros não deixam o rosto à vista. No peito do pé direito, pequeno e de unhas vermelhas, uma borboleta tatuada.

Quem é essa moça? Que quarto é esse?

Sua imagem refletida no espelho da cômoda mostra-o usando um casaco azul, camisa branca e calça jeans. Claro! Os bolsos! Deve haver algum documento. Rápido examina-os e nada encontra. Nada também nos bolsos da calça.

Droga! O que está acontecendo? É um esforço, um grande esforço inútil, tentar pensar, lembrar de alguma coisa. Desconsolado ele encosta a cabeça à porta e examina o quarto com atenção. Nada ali lhe parece familiar. Nem os cheiros no ambiente trazem-lhe qualquer recordação.

Um resmungo infantil cresce no corredor:

- Mamãe! Mamãe!

O menino que aparenta não mais que três anos de idade passa por ele como se não o visse, entra no quarto e vai direto à cama, aconchega-se ao lado da mulher.

Pouco depois o menino está dormindo. Ele se aproxima cauteloso. A criança tem o cabelo como o da moça, mas nas infantis feições ele reconhece a si mesmo. Ele cobre a criança com uma ponta do edredom e percebe que a mulher não respira, no peito a marca de um tiro.

Lentamente ele se retira fechando a porta com cuidado.

Longe, um galo canta.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Nau fantasma.

Feito a nau Catarineta

Sem porto pra atracar

Estou perdida do céu

E à deriva no mar


Só quero um vento forte

Que me faça navegar

Calmarias não me levam

Aonde eu quero chegar

Estou perdida do céu

E à deriva no mar


A fome castiga o homem

Que insiste em viajar

O medo gruda na alma

E não me deixa voltar

Estou perdida do céu

E à deriva no mar


Azrael visita o barco

Quer alguém para levar

De tantas visitas feitas

Somente eu e a morte

Nas ondas da noite negra

Estamos no mesmo lugar

Estou perdida do céu

E à deriva no mar.