Bem vindo ao meu mundo

Bem vindo ao meu mundo

segunda-feira, 29 de março de 2010

R.P.M. (Registros Post Mortem).

Tudo lhe parece sem sentido, uma queda veloz e terrível. Mas, não fora essa a sua busca? “Mate o corpo que a alma morre”. Recordou o aço frio da navalha cortando pele, carne e nervos, o tempo passando lento, as pálpebras pesando, amolecimento e calafrios. Abre os olhos devagar, pois a claridade o incomoda. Permanecera, talvez, tempo demais com os olhos fechados. Do teto uma luminária circular ilumina o aposento de paredes brancas. Ao tentar mudar a posição do corpo percebe a inutilidade do movimento. Tem as mãos presas à lateral da cama e está no leito de um hospital. À direita, a porta fechada. Nenhuma janela. Por que não há janelas aqui? Pensando nisso adormece novamente.


Tem pesadelos e nem ao menos sabe se eles ainda o perturbam. Já se tornaram companheiros habituais, habitam sua solidão, seus dias vazios e sua falta de amor. Lentamente retorna ao mundo dos despertos. Há algo diferente, pois o cheiro que lhe chega ao nariz mudou, não é mais aquele característico de um hospital: éter, clorofórmio ou sabe-se lá o quê. Há um odor desconhecido, parece que de sangue seco e umidade. Concentra-se em permanecer acordado. Ainda preso pelos pulsos, porém não em uma cama. As paredes à sua volta não mais são brancas. Cores primárias colorem desenhos de figuras humanas e animais, dispostas em círculos incontáveis e em baixos-relevos nas paredes de pedra. À sua volta vozes entoam em uníssono. Buscou dentro de seus devaneios suicidas a explicação para o que fizera. Quando desistiu? Sua vida fora uma eterna desistência? Tanto tempo buscando respostas, tantos caminhos desejados e não trilhados. Muita dor, pouco riso.

Da porta, aberta delicadamente, uma moça ruiva o observa. Ele pode ver os dentes dela, mostrados em um meio-sorriso. Dentes brancos como a roupa que ela usa. Brancos como as paredes do quarto. O olhar de comiseração que ela lhe dirige causa nele uma vontade de gritar e gritaria se não lhe faltasse voz. Mas por que pensar sobre isso agora? É tão bom ter a mente vazia. Pensara muito nos últimos dias. Esquecimento pleno e imobilidade física era seu desejo.

Não viu a ruiva fechar a porta. Já não é a luminária sobre seu leito que clareia o ambiente. Percebe que a claridade entra por uma fresta entre os blocos de pedra. O canto monótono está mais próximo. Sente o medo crescendo em seu espírito. Dúvidas pipocam em seu cérebro e já não sabe se a sorte de seu corpo lhe é assim tão indiferente como até a pouco parecera. Se tanto faz vida ou morte porque a angústia faz seu peito doer tanto? Podia voltar atrás, afinal estava vivo e seguro em uma cama de hospital e, por Deus, queria continuar vivo, mesmo sem saber o motivo. Ainda que a vida se resumisse a respirar e nada mais, queria viver. Mesmo a dor, que sentira estender-se da epiderme até o fundo da alma, aceitaria novamente se fosse preciso.

Nesse momento a ruiva lhe acena uma despedida discreta com a mão direita, enquanto a esquerda acaba de fechar a porta. As paredes brancas se dissolvem no ar e sua realidade é agora o templo feito de pedras sobrepostas. Ao redor do altar de sacrifícios onde está preso, sacerdotes mascarados cantam numa antiga língua que ele entende e, se abrisse a boca, certamente é a que falaria. É um canto de saudação a um deus que exige sacrifício de sangue humano para atender aos pedidos de seus devotos. Atordoado, fecha os olhos e os abre novamente esperando estar no hospital, porém continua no templo. Sabe que está acordado e isso não é um pesadelo, é a sua realidade. Então o quarto de paredes brancas e a enfermeira ruiva gostosa é que faziam parte de um sonho? Não pode ser verdade. Súbitos flashes atravessam sua mente liquefeita. Numa floresta tropical, calor sufocante, ele foge de seus perseguidores. Muitos de sua tribo foram mortos e a aldeia destruída. Não há ninguém que o possa ajudar.

Um dos mascarados aproxima-se trazendo nas mãos uma faca cujo cabo é um... Pedaço de fêmur humano? Nada mais há a fazer. O sacerdote ergue a faca sobre o centro de seu peito. Fecha os olhos e aguarda a dor derradeira.

O som de uma campainha. Campainha? A ruiva o avisa do término de seu turno, lhe deseja boa noite, sai do quarto e deixa pairando no ar o perfume a que ele já se acostumou. Dorme embalado pelo acalanto vindo de sua longínqua infância.

domingo, 28 de março de 2010

O executor.

Era-lhe impossível imaginar-se falando a alguém a respeito do que o incomodava. A certeza da bizarrice das conclusões a que chegara tirava-lhe toda e qualquer vontade de verbalizar seus pensamentos. Como aceitar que o que o incomodava de fato era ele mesmo?


Na esperança de exorcizar-se começou a escrever. Escrevia horas a fio, para si mesmo, para ninguém mais. Escrevia páginas e mais páginas e após rasgava-as miudamente ou fazia uma fogueirinha discreta no fundo do pátio ou no banheiro da casa. Discreta para que ninguém viesse lhe perguntar o que estava queimando. Sabe como é. Nunca falta um curioso na volta.

Assim passou-se o tempo: pensar, escrever, rasgar, queimar. Até o dia em que mesmo isso perdeu completamente o sentido. Via-se num beco sem saída e continuava incomodado, sofrendo por dividir–se consigo mesmo. Dividir corpo, mente, espírito (talvez?) com seu maior algoz. Era como dividir suas confidências com o executor de sua sentença de morte. Pior ainda, o executor não usava capuz para cobrir o rosto e ele se via ajoelhado à beira da guilhotina, confessando pecados, amores, sonhos e frustrações de uma vida inteira àquele que, em instantes, separaria sua cabeça do resto do corpo. E aquele era ele mesmo, olhando-o de cima e sem o menor traço de empatia ou remorso pelo que faria em instantes.

Sabia das responsabilidades externas a si. Não queria causar problemas a outros, principalmente às pessoas com quem convivia diariamente, mulher, filhos, colegas.

“Era um cidadão comum, como esses que se vê na rua.” Mais essa agora, pensou, não bastassem suas próprias ideias loucas, ainda vinham à mente ideias loucas de outros.

Queria tanto não pensar mais ou, pelo menos, pensar de uma forma mais lógica. Menos pessoal? Se assim o conseguisse poderia deixar seu eu algoz de lado e sem qualquer possibilidade de ação dentro de seu pensar, pois estaria sendo imparcial, mas não via remota possibilidade disso acontecer. Seus limites há muito estavam demarcados. O limite final era sua própria pele e dali não lhe era permitido ultrapassar.

Foi dessa maneira que colocou as coisas quando, não por vontade própria, mas por determinação hierárquica superior, viu-se frente a frente com o psicólogo da autarquia estadual onde trabalhava há quase vinte anos.

Pode ser que o especialista saiba indicar a saída. Não custa tentar, o sigilo é garantido devido à ética profissional.

Arrependeu-se das pretéritas fogueirinhas. Teria preferido entregar seus escritos a conversar com alguém de fora de seu mundo. Seus escritos seriam como garrafas jogadas ao mar e encontradas por outra pessoa em um continente muito distante da ilha onde naufragara. Alguém que jamais o veria pessoalmente. Sem contato, sem possibilidade de interação com o que trazia dentro de si, pois odiava aquele que o fazia sofrer e sabia por intuição que, assim como ele, outros sofreriam por suas mãos. Mesmo assim, instado pelas palavras persuasivas do doutor, tentou esmiuçar sua lógica absurda a quem se dispunha a ouvir-lhe durante quarenta e cinco minutos diários, uma vez por semana, consultas pagas pelo convênio médico.

Foi na quinta sessão que, de forma banal, comentou ao doutor que começara a sentir uma comichão mo peito. O psicólogo, demonstrando preocupação com o novo paciente, pediu-lhe para abrir a camisa. Ele daria uma olhada e lhe indicaria um especialista se constatasse visualmente algo de anormal, pois o paciente lhe garantira nada ter visto na pele. No entanto, o que viu, sua última visão nesse mundo, deixou-o, por breves segundos antes da morte, completamente estarrecido. Do peito do paciente, exposto à difusa claridade do consultório climatizado, duas garras escuras e gélidas atravessaram a pele branca do tórax, seguraram como tenazes seu pescoço engravatado e o sufocaram lentamente. Não por surpresa, mas por absoluta impossibilidade, nenhum som saiu de sua garganta pouco a pouco dilacerada pelas garras de rapina.

O legado Dinasta.

No beco escuro e fétido onde fora largado ele tenta recompor seus pensamentos. O pouco que recorda não lhe basta. Enquanto isso deixa seu corpo inerte, como se a imobilidade física pudesse acionar um movimento cerebral repentino que o fizesse recordar dos últimos momentos – serão horas, dias, meses? Há quanto tempo está ali? Onde esteve antes? Quem o trouxe ou como veio? Encolhe as pernas junto ao corpo, evitando que os ratos continuem a passar por sobre suas canelas.


Bem, ele pensa, vamos relaxar, fechar os olhos, esquecer essa dor que parece espalhar-se pela circulação sanguínea. Deixar a mente vagar até encontrar algo que a faça recordar.

Encontrara um amigo que há anos não via. Conversaram e o amigo lhe contou como sua vida mudara desde que entrara para um grupo de empreendedores denominado ... Não conseguiu lembrar. O amigo convidou-o a participar de uma reunião do grupo na semana seguinte, na noite de quinta-feira. A reunião fora marcada na cidade vizinha da que morava. Ele deveria ir sozinho:

- Questão de segurança. Você entende, não é?

Não, não entendia, mas não tinha importância, pois não pretendia mesmo ir. Achara o antigo amigo muito diferente, estranho de um modo que não soube definir. Tinha mais o que fazer e não pretendia deixar de ficar com sua namorada para ir a uma reunião dos ... Engraçado! Por que não conseguia lembrar?

Ao sair do serviço na quinta-feira da semana seguinte, sem conseguir evitar, seus passos o levaram à estação rodoviária. Tomara o ônibus das 19h. Às 20h15min desembarcara na cidade vizinha e, mesmo desconhecendo o endereço indicado pelo amigo, às 21h chegara pontualmente ao local da reunião.

Pessoas desconhecidas conversavam na entrada de um salão mal iluminado. Os espelhos do hall estavam cobertos por panos pretos. Caminhou pelo recinto como se já o conhecesse. Na semiescuridão avistou seu amigo conversando com um casal. Foi até ele.

Nesse momento tudo ficou confuso novamente. As imagens passavam em flashes rápidos e pouco delas ele conseguia manter.

Os que estavam no salão, após a porta principal ser fechada, cercaram-no com expressões famintas. Homens, mulheres, sangue, cheiro de morte e uma dor lancinante em seu pescoço. Após, a escuridão e o beco, os ratos, o muro pichado à sua frente.

O muro! Sabia que algo nele chamara sua atenção. Trêmulo, levanta-se e chega bem perto do muro, onde lê a palavra escrita com tinta spray vermelha: DINASTIA. Grita como um “Eureka”:

- É isso, dinastia!

Uma dor aguda em sua têmpora esquerda quase o derruba novamente. Os flashes da memória vão se ligando até formarem o quadro completo. Cambaleante ele sai do beco sujo. Toma a direção da rua movimentada. Não a reconhece, porém isso não mais importa.

No asfalto molhado os carros deslizam. Os bares lotados. Uma garota de minissaia passa por ele, apressada. Algo desperta, embrutecido e selvagem, dentro dele. Perdendo o resto de lucidez e com uma expressão faminta no rosto vai atrás da moça.





28.03.2010.

domingo, 21 de março de 2010

A troca.

Acordou sobressaltado, com a sensação da queda que nos é familiar desde crianças. Término de pesadelo, vôo sonhado, cordão de prata que prende o espírito ao corpo, ou outra esdrúxula ou científica explicação qualquer.


Teve pouquíssimo tempo para ver alguma coisa à volta e o que viu não lhe forneceu explicação alguma antes de sua morte. Viu-se no reflexo de um grande vidro retangular espelhado à sua frente. O reflexo o mostrava preso a uma cadeira de encosto alto, um dispositivo metálico acoplado à sua cabeça e ligado a fios espiralados pretos e vermelhos que terminavam em um grande interruptor na parede à sua direita. Esse interruptor seguro pela mão de um homem vestindo terno preto e gravata. Acima do vidro, uma inscrição que lhe pareceu em latim e abaixo: Elyria – Ohio.

Mas a imagem refletida no vidro era de um homem branco e gordo vestindo um macacão de cor laranja, em cujo bolso, no peito, está serigrafado o número 8401. Não era, de jeito nenhum, a sua própria imagem, mesmo assim ele sabia que estava lá dentro daquele corpo prestes a ser eletrocutado. Milésimos de segundos. A mão do homem de terno desceu a chave e tudo acabou.

Em Gregória/México amanhece. Carolina volta ao quarto e da porta chama:

- Victor, está na hora, homem! Já estou saindo e levando “Bi” para a creche. Toma café antes de sair!

Ele abre os olhos devagar. Parece desconfiado, não assustado, talvez incrédulo. Senta-se à cama. Examina as mãos, os braços, as pernas, os pés. Volta ao abdômen tenso e ao peito sem pelos. Olha o rosto no espelho do armário e dá uma grande gargalhada, deitando-se para num pulo rápido sair da cama de vez.

Aproxima o rosto do espelho e sorri com satisfação para a própria imagem. Aprova os dentes brancos, a barba por fazer, os olhos escuros, o pescoço forte, os ombros de nadador. Um bonito homem, hein? Então deu certo? O livro não mentira, afinal. Quem diria?

Vai até a porta do quarto e examina o local. Está em uma casa modesta, mas não miserável, limpa, guardanapos de crochê coloridos por todos os cantos. Na mesa da cozinha, café servido. Retorna para o interior do quarto e vê a foto de uma bonita, linda, gostosa morena abraçada ao corpo que o espelho agora reflete. Essa é minha mulher? Me dei bem demais!

O porta-retratos ao lado do primeiro mostra uma menina de uns cinco anos de idade, bonita como a mãe e exatamente como eu gosto. É só fazer tudo direitinho que ninguém vai perceber nada. Não vou cometer os mesmos erros que com as outras 27 meninas. Dessa vez os ratos não me pegam. Posso sumir com as duas, mas antes vamos aproveitar muito bem, principalmente com a garotinha do papai. Pensando nisso, acaricia os próprios genitais. Hum! Isso aqui ta muito bom também! Gostei!